Ignorância e limitação
Silêncio por favor
Enquanto esqueço um pouco
a dor no peito
Não diga nada
sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais
quem me deixou assim
Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas
E nada mais nos braços
Só este amor
assim descontraído
Quem sabe de tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito
Esta canção, na interpretação minimalista de seu autor, Paulinho da Viola, ou no canto construído de Marisa Monte, é a concreta possibilidade de se produzir beleza. Nela estão reunidos precisão poética e modernos recursos formais, numa demonstração de que a maestria artística não se limita ao ambiente ‘erudito’, ou de ‘vanguarda’. Também pode estar no ‘popular’.
A expressão organizada de estados emocionais — a que denominamos arte —, bem como sua fruição, constituem atributos exclusivamente humanos. Categorizá-los de acordo com a origem social de seus produtores e, pior ainda, conforme o público a que se destina, são comportamentos típicos de mentes arrogantes.
A invenção, nas artes ou nas ciências (estas mesmas uma forma de arte — leia ‘Ars Humanae’ quântica), independe da origem social de seu produtor. Certamente que o acesso à educação e à cultura pode lhe proporcionar alguma vantagem, ou oportunidade, mas não necessariamente.
O que está na essência do inventor, ou mesmo do mestre — admitindo-se a categorização do poeta e crítico Ezra Pound (1885-1972) —, é o talento natural e as habilidades aprimoradas daquele que organiza e emite a mensagem (artística ou científica). É a genialidade da raça.
Paulinho da Viola, que tomei como exemplo, é mestre no ofício de depurar emoções em precisas palavras; desvendar a essencialidade humana; mostrar que é possível ser popular e universal.
Quê importa sua origem social, ou se ele possui atributos formais além daqueles que o permitem se expressar em textos depurados e sons organizados? O que tem valor é a qualidade fina de sua obra; seu poder de emocionar, inquietar e suscitar reflexão, independente da educação e da cultura de seu público. Como tantos outros dessa estirpe (preste atenção no solo do cuiqueiro, na versão de Marisa...).
Categorizar os indivíduos — em especial produtores de artes — segundo suas aparências, origens ou o meio em que circulam, é uma atitude desinteligente, um vício civilizacional adquirido e que não conseguimos abandonar. Mas também é, e principalmente, uma muleta social e um biombo moral para esconder nossa própria ignorância e limitação.

